sábado, 19 de novembro de 2011

Graciliano Ramos: a angústia de "Angústia"

Brevíssimos e simplórios apontamentos sobre a obra "Angústia", de Graciliano Ramos
Por: Iba Mendes (novembro de 2011)

A aflição de Luis da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado lingüístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu título. A frustração, a insatisfação e o sentimento de inutilidade do funcionário público Luís, sua impossibilidade de lutar contra uma rotina que consome seu tempo e sua existência, são assim destrinchados nas palavras que este emprega para entender o mundo e aqueles que o cercam. “A minha linguagem”, diz ele: “é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes”. É com essa linguagem que ele constrói sua realidade solitária, e é com ela que sua angústia e frustração existencial sobressaem do início ao fim do livro. Palavras como carne, sangue, entranhas, ventre, tripas e outras correlatas, tornam sua angústia à própria angústia de quem o ler:

Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava”.

O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrobucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em silêncio.”

Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos parallepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho.

Necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capueira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus”.

Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. O homem para um lado, ela para outro, arrastando a filha pequena, a barriga deformada, estazando-se, agüentando pancadas nos olhos. Talvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-ia dentro de algumas horas na cama dura, a carne cansada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas remendadaz.

Parecia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos, como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria. Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.”

Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis.”

Com um pouco de esforço podia admitir-se que fosse redondo, mais ou menos redondo, comparável a uma cabeça chata feita de curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em circunvoluções cerebrais, levantei-me e fui beber um gole de aguardente.

Na escuridão do cárcere, depois que a chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da cadeia recebia os duzentos réis do torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüentaria facão, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.”

A linguagem, portanto, é o que caracteriza não apenas a angústia da personagem, como à do próprio autor, que vivenciou na “própria carne” o tormento do cárcere. Quando escreveu esta obra, Graciliano tinha sido preso a mando do governo ditatorial de Getúlio Vargas, daí, por exemplo, às constantes menções à “água de bacalhau”, subterfúgio utilizado pela polícia getulista para torturar seus adversários políticos: “Não me matem de fome nem me dêem água de bacalhau. Eu me explico.” / “Não seria preciso me darem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Água de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio...”/ “A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Precisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Confessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes, as cartas, os artigos.” / “As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.”

O assassinato de seu rival Julião Tavares, que seu deu com uma corda que ganhara de presente do pedinte Ivo, torna-se assim o ápice da sua desesperação, o terrível instante em que Luis da Silva se sentiu verdadeiramente "superior”.

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É isso!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"Terra do Pecado", de José Saramago

"Terra do Pecado", de José saramago: breve análise
Por: Iba Mendes (novembro de 2011)

Não li todas as obras de Saramago, e aquelas que tive a satisfação de ler talvez não sejam suficientes para decifrar seus enigmas, contudo, foi quase o bastante para concluir que não é possível entendê-lo sem se levar em conta a “problemática” religiosa.

Como se sabe, Saramago morreu intoxicado pelo “hormônio comunista”, como ele mesmo se definia em vida. "Por que precisamos de Deus?”, indagou ele quando sabatinado no Teatro Folha, em 2008, ao ser perguntado se a doença havia mudado sua percepção de Deus. Já em relação à Bíblia, declarou ele na mesma ocasião que se tratava de um “desastre”, cheia de "maus conselhos, como incestos, matanças". Aparentemente uma jibóica contradição, levando em conta que, se não todos os seus livros, ao menos uma boa parcela deles está muito bem guarnecidos por temas bíblicos e passagens diretamente relacionadas à cristandade. Seu último livro, por exemplo, tem por título exatamente o nome de uma conhecida personagem bíblica: “Caim”. Há outros títulos que remetem da mesma forma ao universo bíblico e cristão, tais como: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Memorial do Convento”, “A Segunda Vida de Francisco de Assis” etc.

“Terra de Pecado” é mais outro título, que de igual maneira traz ao horizonte literário de Saramgo a velha problemática religiosa, os valores judaico-cristãos, que tão profundamente impregnaram a cultura e a moral do Ocidente. O sentimento de culpa que atormenta e persegue a personagem Maria Leonor, após a morte de seu marido, sintetiza em si o título do livro, muito embora este, segundo o próprio autor, fora dado pelo editor que não via em “A Viúva” um atrativo comercial.

Saramago, como um bom crítico da moral cristã, soube conciliar no livro ao mesmo tempo a “crença” e a “dúvida”, esta última muito bem tipificada na personagem Pedro Viegas, um “bom herege”, segundo o padre Cristiano. Benedita, a criada, faz o papel da “divindade possessiva” ou do "sacerdote vigilante", que não admite transgressões, que fica sempre de sentinela, que condena e que exige fidelidade absoluta. Leonor, fragilizada física, emocional e espiritualmente sofre a tortura de ter que lidar ao mesmo tempo com a severidade moral imposta pela tradição e a vontade de se libertar para à vida. O médico e amigo Viegas, que muito lhe ajudou na reconstituição de sua saúde, busca também, na sua visão de cético, curar sua alma atormentada: “Eu podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tu sofreste, podia passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis, lembrando a minha mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvi deixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas um pouco triste, dedicar um breve espaço da minha vida à amargura de a haver perdido. Ao princípio, custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga imensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura. Mas como tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos a extraordinária simplicidade da vida! Como nós atribuímos ao simples correr dum elo da cadeia uma importância tão grande, minha filha! No fundo, é apenas isto: o cessar de uma existência, o apagar duma lâmpada. Os laços do sangue, o hábito, é que complicam esta sucessão, este passar do facho...” Mas ele era um herege, ou, como disse Benedita: “um homem condenado às penas do inferno”, como isso era possível? Ao que a própria Leonor responde, quando questionada pela criada: “Os homens são simples instrumentos de que a vontade divina se serve para cumprir os destinos que demarcou na eternidade. Que importava a Deus que o escolhido para me curar fosse um ateu ou um crente? Deus entendeu que eu devia ser salva e salvou-me. Não podemos perscrutar as razões que levaram a Providência Divina a segurar-me quando eu me despenhava nos abismos da inconsciência e da morte. Foi o doutor Viegas quem me salvou, dirão os cépticos; foi Deus que, por intermédio dele, não quis que eu morresse já, dirão os crentes; ainda não era a minha hora, dirão os fatalistas. Todos temos razão, afinal. Eu fui salva quando me perdia. Quem me salvou? Foi Deus, foi um homem, foi uma ideia? Tudo isto e nada disto. As ideias que fazemos de Deus, do homem e da ideia são, apenas, imperfeitas compreensões do que deverá ser a Verdade, se é que, por fim, a Verdade não é totalmente diferente. - Parou um momento e continuou, com um leve sorriso: - Apesar de todas estas dúvidas, todos nós, no fundo do nosso ser, cremos em alguma coisa. O próprio doutor Viegas, com tudo o que diz e faz, crê. Cremos justamente porque não sabemos e é esta constante ignorância que mantém a fé, qualquer que ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, se fosse conhecida, talvez destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grande manicômio. O que nos vale, o que nos mantém nesta indiferença de boi ungido, é a impossibilidade do conhecimento absoluto, e então contentamo-nos com simples aparências, de que tecemos a vida inteira.

Viegas, aparentemente o “alter ego” do próprio autor Sramago, está a todo momento instigando à dúvida, ao questionamento quanto aos valores impostos pela religião à sociedade, seja na simples recusa em dar graças a Deus pela comida, seja na ironia como tratava o padre Cristiano, de quem dizia que o único defeito “era saber teologia e latim”. Viegas, embora moderado em seu ateísmo, não perdia uma oportunidade para instigar a vacilante Leonor ao ceticismo: “- Não sei que diacho de escrúpulos são estes, mas peço-te que te lembres que o Dionísio crescerá, que os livros e a vida hão-de dar-lhe perspectivas diferentes das atuais e que as suas crenças infantis sofrerão rudes abalos. E ele não resistirá, por certo...” / “- Ai, não estou a brincar, menina, não estou! Só quero saber o que posso fazer por ti. Bem vês, se te refugias na religião, então, eu, do fundo da minha insignificância, afasto-me e deixo o campo livre à consolação suprema...

Benedita, não obstante na sua simples função de criada, exerce um poder decisivo sobre a pobre Leonor; se não o próprio poder da “divindade”, ao menos de um de seus “representantes” na terra: - Parece que a Benedita se transformou na guardiã da moralidade da casa.” / “- Tudo o que ela faça ou diga tem sempre para mim um segundo sentido uma intenção reservada. E justamente o que me tortura é o não saber ainda, depois de todo este tempo, quais são as suas verdadeiras intenções.” A cena, a seguir, é o ápice da força moral pela qual a empregada mantinha atormentada a viúva no peso da tradição, é quando descobre que esta, pela segunda vez após a morte do marido, mantém relação sexual com outro homem, o primeiro seu cunhado, e dessa vez com seu médico e amigo, Pedro Viegas:

“Benedita remoía um desespero nervoso e irritado. Por fim, deixou-os na ruidosa alegria com que empurravam, todos à uma, a nora, que estralejava içando caudais do poço.
Deitou a correr, curvando a cabeça ao passar debaixo dos ramos caídos da nogueira que assombreava o largo onde se afundara o poço. O lenço preto que levava nos ombros prendeu-se-lhe num espinheiro, e ela nem sequer olhou. O hortelão, ao vê-la naquela corrida, perguntou, entre duas enxadadas:
- Que levas tu, mulher?
A criada não respondeu. Continuou na correria desatinada, já ofegante, com o coração a pulsar-lhe desabaladamente no peito. Quando empurrou a cancela, feriu uma das mãos na farpa de um arame, mas nem sentiu a dor nem o calor do sangue. Parecia que era levada por uma força sobre-humana que a cegava e tornava insensível a tudo que não fosse o caminho que conduzia a casa.
Ao virar a esquina, parou um instante, arfando. Olhou pela alameda fora até à estrada deserta. Rente ao prédio, deu uma carreira, a ocultar-se debaixo do alpendre. E dali aproximou-se mais devagar, até chegar à porta. Entrou silenciosamente. Foi à sala de jantar, mas regressou logo, vendo-a deserta e escura. Correu todas as casas do rés-do-chão numa busca ansiosa, foi até à cozinha, onde surpreendeu Joana, que dormitava sobre a mesa enquanto as panelas chiavam. Atirou a porta num repelão e correu para a escada. Ali, no momento em que ia precipitar-se, sentiu um arrepanhamento de medo e ficou largo tempo encostada ao corrimão, sem se atrever a subir.
Depois, numa decisão brusca, subiu a escada, à pressa, soerguendo as saias para não tropeçar. Ao chegar acima, endireitou logo ao corredor. Vendo fechada a porta do quarto da patroa, deitou as mãos ao puxador e, com um empurrão desesperado, fez saltar o trinco. A porta girou nos gonzos e foi embater na parede com um estrondo cavo que retumbou no quarto, que ecoou por toda a casa até se desfazer no silêncio morno e abafado da atmosfera.
Quando olhou para dentro, teve uma vertigem que a obrigou a apoiar as mãos trémulas, úmidas de suor, nas ombreiras da porta. Sobre a cama desfeita estava Maria Leonor, inerte, vermelha, descomposta. Os travesseiros caídos, a colcha arrastando no chão, um odor de sexo no ar...
Com um grito sufocado, Benedita recuou para a penumbra do corredor, com todo o sangue nas faces abrasadas, uma horrível náusea a subir-lhe do estômago até à garganta. Mas logo se atirou para dentro do quarto. Parou diante de Maria Leonor, a tremer, olhando-lhe as saias amarfanhadas, subidas quase até às coxas.
Estendeu a mão vacilante e cobriu-lhe as pernas. No mesmo instante, Maria Leonor moveu-se sobre os colchões com um gemido surdo e dorido. E logo, sem transição, abriu os olhos. Olhou para a criada, inexpressivamente, e soergueu-se, levando as mãos aos rins, com uma careta de dor. Sentada na cama, deitou um olhar à sua volta e começou a tremer. Levantou os olhos para Benedita, com uma expressão de medo inenarrável, absoluto.
A criada curvou-se para ela e deitou-lhe as mãos aos pulsos. Aproximou-a de si e, forçando a língua que se lhe entaramelava, só pôde perguntar:
- Que foi isto?

A sequencia de tudo isso parece ser o fim da própria Leonor, que tem sobre si multiplicado o fardo de culpa, porém, quem sucumbe à força da morte é o médico, num “auto-sacrifício”: “- Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto, também. Deve ter caído...

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É isso!

domingo, 6 de novembro de 2011

“As alegres senhoras de Windsor", de Shakespeare: brevíssimo comentário


Como toda comédia de Shakespeare, “As alegres senhoras de Windsor” é o enquadramento perfeito da máxima latina “Ridendo castigat mores”: instrui ao mesmo tempo em que diverte... A sagacidade das senhoras Ford e Page, aliada à fútil ostentação de Sir John Falstaff é de fazer “rir até cuspir o fígado”:

FALSTAFF
Deixa de trocadilhos, Pistola! É verdade que tenho uma cintura de duas jardas; mas neste momento não importa meu cinto, mas o que sinto. Em resumo, rapazes, tenho em mente fazer a corte à mulher do Ford. Estou certo de que hei de divertir-me bastante: conversa bem, é afável, sabe convidar a gente com o rabo do olho. Interpreto perfeitamente o seu estilo familiar. Mas o mais renitente trecho de sua conduta poderá ser traduzido da seguinte maneira: “Chamo-me sir John Falstaff! / FALSTAFFTenho aqui comigo uma carta escrevi para mandar-lhe, e uma outra para mulher de Page, que, faz pouco tempo, me lançou olhares animadores e examinou o meu físico com miradas judiciosas, ora dourando-me os pés com raios dos olhos, ora o ventre avantajado. / FALSTAFF — Percorreu minhas formas exteriores com tão ávida curiosidade, que o apetite de seus olhos parecia queimar-me como um espelho ustório. Esta carta aqui é para lhe ser entregue. É ela, também, quem dirige a bolsa do casal; é um trecho da Guiana, rica em ouro e liberalidades. Passarei a ser o coletor de ambas, e elas o meu tesouro, as minhas Índias orientais e ocidentais, comerciando eu pelos dois lados. Leva esta carta para a senhora Page, e tu, esta outra para a senhora Ford. Vamos ficar ricos, rapazes! Vamos ficar ricos! / SENHOPA FORDComo! Das cartas amorosas escapei no bom tempo de minha beleza, para tornar-me agora assunto delas? Vejamos: “Não me pergunteis o motivo de vos amar, porque embora o amor empregue a razão como seu médico, não a admite como conselheira. Já não sois jovem, como eu também não o sou; tendes gênio alegre, tal como eu, ah! ah! Para que maior simpatia? Gostais de xerez tanto quanto eu. Poderíeis desejar maior afinidade? Em resumo, senhora Page, basta saberes — se o amor de um soldado te for suficiente — que te amo. Não direi que te apiades de mim, por não ser soldadesca semelhante frase. Direi apenas: ama-me! Do teu cavaleiro que ao claro luzeiro do sol ou candeeiro por ti, prazenteiro, saudara o coveiro, lutando primeiro com o mundo inteiro. John Falstaff.” Que Herodes da Judéia será este? Oh mundo perverso! perverso! Um sujeito quase de todo roído pela idade, e que se comporta como um moço conquistador! em nome do diabo, que gesto refletido de minha parte poderá ter surpreendido esse bêbedo flamengo em minhas conversações, para ousar assaltar-me por esse modo? Como! Não chegou a conversar comigo nem três vezes! Que lhe poderia ter eu falado? De todas essas vezes fui muito frugal com relação à minha alegria — o céu que me perdoe! — Ora essa! Vou apresentar no parlamento uma lei para supressão de todos os homens. De que modo poderei vingada hei de ser, tão certo como serem feitas de pudim as minhas vísceras. / SENHORA PAGE Carta por carta, com a diferença de que onde uma traz o nome “Ford” a outra mostra o nome “Page”. Para tranqüilizar-te a respeito do mistério de tua má reputação, aqui tens a irmã gêmea de tua carta. Mas que fique a herança para a tua, porque posso assegurar-te que a minha jamais a reclamará. Aposto como ele tem um milheiro dessas cartas, com o lugar para o nome. E mais: que estas já estão em segunda edição. Sem dúvida alguma, vai publicá-las, porque para ele pouco importa o texto, contanto que o nosso nome esteja no meio. Eu preferia ver-me transformada em um dos gigantes e ficar debaixo do monte Pélion. Pelo que vejo, é mais fácil encontrar vinte rolinhas lascivas do que um homem casto.

Temas comuns em Shakespeare norteia toda à peça, como o ciúme, algo muito bem realçado em
Ford, o gentil-homem de Windsor, que chega a se disfarçar a fim de trazer á tona a suposta perfídia de sua esposa e a canalhice de Falstaff:

FORD
Muito embora Page seja um imbecil pachorrento e confie demais na fragilidade de sua mulher, não porei de lado minhas desconfianças assim com facilidade. Ela esteve com Falstaff em casa de Page, não sabendo eu o que fizeram por lá. Muito bem; vou estudar o caso mais de perto. Tenho um disfarce para sondá-lo. Se eu verificar que ela é honesta, não darei por perdido o trabalho. Caso contrário, foi muito bem empregado. / FORD — Que epicúrico amaldiçoado é este miserável! Sinto o coração partir-se-me de impaciência. E ainda haverá quem me venha dizer que o meu ciúme é intempestivo? Minha mulher lhe mandou recado; a hora está marcada; é negócio feito. Alguém poderia pensar em semelhante coisa? Vede que inferno é possuir uma mulher falsa. Vou ficar com o leito poluído, os cofres saqueados, a reputação estraçalhada. E não somente terei de suportar todos esses ultrajes, como ainda serei forçado a ouvir os mais abomináveis qualificativos, da boca, justamente, de quem me lança todo esse opróbrio. Que qualificativos? Que nomes? Arnaimom soa bem; Lúcifer, bem; Barbason, bem. No entanto são qualificativos do diabo, nomes do demônio. Mas cornudo, cabrão, chifrudo! Nem o próprio diabo tem esses nomes. Page é um asno, um asno sossegado; confia na mulher, não sente ciúmes. Eu preferira entregar toda minha manteiga a um holandês, meu queijo ao pastor Hugo, o galense, minha garrafa de aguardente a qualquer irlandês, ou o meu cavalo castrado a um ladrão, para dar um passeio nele, a deixar minha mulher com ela própria. Ela enreda, rumina e trama; o que as mulheres resolvem no coração tem de ser levado a cabo; ainda que se lhes parta o coração, têm de ir até ao fim. Louvado seja Deus por causa do meu ciúme. Onze horas é a hora combinada. Vou impedir isso, surpreender em flagrante minha mulher, vingar—me de Falstaff e zombar de Page. Não perderei tempo. melhor chegar três horas mais cedo do que atrasado de um minuto. Sim, senhor! Sim, senhor! Cabrão! Cabrão! Cabrão!

A senhora Quickly, que
diz detestar mexericos, é a típica expressão de uma astuta alcoviteira. Aliás, outro tema comum, não apenas em Shakespeare, como na dramaturgia universal ao longo dos tempos. Vemos isso de modo destacado em Gil Vicente, na pessoa de Brísida Vaz, na peça “Auto da Barca do Inferno”. Quickly, como uma boa agenciadora de casamentos, sempre sabe agradar seus “clientes”:

QUICKLY
Está bem. Mas ainda tenho outro recado para Vossa Senhoria: a senhora Page também se recomenda de coração a Vossa Senhoria. E permiti que vos diga ao ouvido: ela é fartuosa como o pode ser uma mulher civil e honesta, uma mulher, posso asseverar-vos, que nem de manhã nem de tarde deixa de dizer as suas orações, tão bem como qualquer mulher de Windsor, seja ela quem for. Pediu-me que dissesse a Vossa Senhoria que o marido dela raramente para fora de casa, mas que ela espera que não há de faltar ocasião. Nunca vi uma mulher tão obcecada por alguém. Só parece que tendes feitiço, não? É pura verdade. /QUICKLY — Oh, senhor! Ela lamenta o que aconteceu; se a vísseis, ficaríeis comovido. O marido dela vai caçar passarinhos esta manhã. Ela pede que a vades ver hoje, entre as oito e as nove. Terei de levar-lhe a resposta com a maior urgência possível. Ela vos apresentará desculpas, posso asseverar-vos.

Shakespeare não é apenas recomendado como leitura, mas
asseverado como obrigatório, pelo menos para quem deseja algo mais do que o simples entretenimento.

É isso!