Embora paradoxal, uma vez que o Kadish só pode ser recitado por adultos, o título “Kadish por uma criança não nascida”, simbolicamente, é deveras pertinente quanto ao conteúdo da obra. Como se sabe, além de ser uma oração feita pelos cultuantes, após a morte de um parente, o Kadish assinala ainda o fim de uma seção litúrgica recitada pelo Chazan. Em “Kadish por uma criança não nascida”, o autor representa, de certa forma, a figura do chazan, o qual “recita”, de maneira extremamente negativa, suas experiências de judeu no período do nazismo. O paradoxal é que sua “liturgia” não tem fim; e, seu “luto”, ao contrário do que ensina a tradição judaica, a qual não permite a recitação do Kadish durante os doze meses que procede a morte do cultuado, na obra, o “luto” do autor é constante e, diferentemente desta mesma tradição, o seu “Kadish” é “recitado” em vida: sua vida é sua morte.
O texto faz transparecer a idéia de uma verdadeira liturgia. Observa-se, tal qual nas rezas, a repetição constante das palavras. Dos poucos parágrafos existentes, a maior parte são marcados pela repetição do NÃO!, palavra esta que sintetiza o conteúdo da obra. Em todo o texto, percebe-se, nitidamente, a presença de palavras ou expressões de sentidos negativos e paradoxais. Por exemplo: doença insidiosa, paranóia moralizante, compulsão discursiva, esclerose dos sentimentos, regato fétido, céu de cores sujas, sonhos medonhos, sorriso cínico-feliz, infame existência, nostalgia, melancolia, sentimento de culpa, cadáver, espetáculo assombroso, atmosfera escura e densa de horror, perversidade repugnante, existência desagradável e outras inumeráveis citações de teor semelhante. E tudo isto torna a obra bastante verossímil, visto que é um reflexo da própria existência do autor: o ambiente em que foi criado, a educação que lhe foi dada, e mais acentuadamente, a experiência de ser judeu, portanto, um estranho na sua própria terra: “mais tarde, quando tornou-se cada vez mais importante o fato de eu ser também judeu, pois tornou-se lentamente evidente que, em geral, isso era punido com a morte, tive que provavelmente ver apenas esse fato estranho e incompreensível – isto é, que eu sou judeu – em sua necessária particularidade ou pelo menos sob outra visada, subitamente me flagrei por saber exatamente o que sou: uma mulher careca com robe vermelho em frente ao espelho” (p. 28).
Embora fosse um judeu totalmente assimilado, Kertész não foi poupado da perseguição voraz do nazismo. Este fato, aparentemente simples, isto é, o fato de ser um judeu, tornou-se a causa de todas as suas desgraças. Tudo nele foi marcado por esta traumática experiência: seu trabalho: “meu trabalho, que na verdade nada mais é que um cavar, o prosseguimento do cavar naquela cova que outros começaram a cavar no ar para mim” (p. 35) (...) “pois minha pá é a caneta esferográfica” (p. 37); seu fracasso matrimonial: “E aí ela ainda disse, rápida e sobriamente, como se se tratasse de uma notícia desagradável que, porém, perde seu gosto desagradável imediatamente após me ser comunicada, sim, não teria sentido esconder, ela ‘teria alguém’, alguém com quem ela acredita que se casará. E ele não seria, disse ela, judeu” (p. 127); sua vida, enfim.
A obra “Kadish por uma criança não nascida” foi, portanto, como o próprio autor afirma, o último grande esforço que ele teve em demonstrar sua vida amargurada e decrépita, vida esta que permaneceria guiada pela culpa e estranheza de ser apenas um judeu: “a demonstrei para então me colocar a caminho, com a trouxa dessa vida nas mãos elevadas, e afundar nas negras águas de um rio escuro, oh Deus! deixe-me afundar... Amém. Este amém encerra a melancólica “liturgia” que, embora “recitada” por só homem, reflete a angústia de toda uma geração.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Kadish por um adulto traumatizado
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Fuga para a realidade
Bruno devia tornar-se um salmão por inteiro, para conhecer a vida” (pg. 141).
A idéia da metamorfose aparece, pois, como elemento imprescindível para se ultrapassar os limites da normalidade, do comum, do banal, do cotidiano marcado pelo caos e pela ausência de valores éticos: “E o pai de Bruno, sonhador com a cabeça de profeta, que se transformou num grande caranguejo de tantos sonhos para tatear os limites da existência humana... desviar-se para as regiões duvidosas e ambíguas, às quais Bruno denomina as regiões da grande heresia” (pg. 100).
Sim, fugir ou isolar-se do mundo real, para atingir um mundo, não propriamente irreal, mas um mundo sem os limites impostos pela áurea dominante; um mundo no qual a vida possa ser vivida e entendida de forma mais profunda. A transformação de Bruno em peixe representa, pois, uma espécie de contestação à cadeia de força imposta pela realidade caótica em que se encontra o mundo: “E veio a última guerra, e Bruno começou a pensar que havia errado: porque as pessoa começaram a substituir a sua iniquidade, e verificou-se que por trás das barracas dos negociantes astutos estendem-se mais mercados profundos e escuros, onde o homem jamais pôs os pés. Ruas corrompidas cujas ruínas e restos de paredes dos dois lados parecem fileiras de dentes de crocodilo... Por isso Bruno fugiu” (pg. 91). Tal qual Mirabeau ou Thotreau, foi preciso a Bruno que largasse o seu “lugar comum” para alcançar uma realidade em que o limite se restringisse apenas à cessação da imaginação: “Bruno pensa (talvez, no poeta Mirabeau que, em protesto contra o governo, tornou-se assaltante. Ou estaria, talvez, pensando no filósofo Thoreau, que abandonou sua cidade e seu trabalho e seu sistema de vida e as criaturas humanas e retirou-se para viver em solidão absoluta na floresta Walden?” (pg. 94). Para compreender o que está aquém do óbvio ou do palpável, fez-se mister que Bruno deixasse para trás aqueles que, tais quais salmões no mar, viviam a mercê dos grandes e prepotentes tubarões do mundo real: “Como é ignóbil o destino daqueles que Bruno abandonou na praia!” (pg. 96).
Metaforicamente Bruno não morreu. Ele apenas fugiu: “E certa noite, algumas semanas depois, despertei de repente e soube que Bruno não foi assassinado. Não foi morto no ano de 42 no gueto de Drohobitz, mas fugiu de lá. E digo ‘fugiu’ não no sentido comum, limitado da palavra, mas suponhamos, como Bruno diria ‘fugiu’. Como diria “aposentado”, e com isto referia-se ao fato de que já havia cruzado as fronteiras permitidas e conhecidas, ao fato que e levara ao âmbito magnético de uma outra dimensão de experiência... / Advinho muito bem esta angústia, este sufoco dele, de escritor exilado, ‘exilado’ num sentido muito específico, muito amplo...” (pg. 100). / “E diante das ondas, eu soube que tinha razão. Que Bruno não foi assassinado. Que tinha escapado. E digo ‘escapado’ não no sentido habitual da palavra, mas como Bruno e eu a dizíamos, e nos referíamos com isto a alguém que se conduziu por esforço e decisão ao campo magnético de uma dife...” (pg. 111). / “Ele é daqueles que chamam eles de judeus porcausaque falta pra ele um tiquinho no tubinho dele e como quedondequele nascdeu lá é Drohobitz e queeleé um serumano que escreve muito e ele agora foge de algo...” (pg. 122).
Contudo, não se trata da fuga no sentido romântico da palavra, em que para não encarar a realidade, o escritor parte para paradas amenas, para lugares nos quais a vida possa ser vivida numa dimensão maravilhosamente espetacular. Em Ver: Amor, a fuga é apenas um meio de se atingir o real que se esconde por trás de um cotidiano materialista em que somente o óbvio é realçado e valorizado. A vida vista do mar é bem mais azul.
---
Referência bibliografia:
“Ver: Amor”, de David Grossman. Tradução: Nancy Rosenchan. Editora Nova Fronteira. São Paulo, 1993.