quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Kadish por um adulto traumatizado


Breves comentários sobre a obra: “Kadish por uma criança não nascida”, de Imre Kertész

Embora paradoxal, uma vez que o Kadish só pode ser recitado por adultos, o título “Kadish por uma criança não nascida”, simbolicamente, é deveras pertinente quanto ao conteúdo da obra. Como se sabe, além de ser uma oração feita pelos cultuantes, após a morte de um parente, o Kadish assinala ainda o fim de uma seção litúrgica recitada pelo Chazan. Em “Kadish por uma criança não nascida”, o autor representa, de certa forma, a figura do chazan, o qual “recita”, de maneira extremamente negativa, suas experiências de judeu no período do nazismo. O paradoxal é que sua “liturgia” não tem fim; e, seu “luto”, ao contrário do que ensina a tradição judaica, a qual não permite a recitação do Kadish durante os doze meses que procede a morte do cultuado, na obra, o “luto” do autor é constante e, diferentemente desta mesma tradição, o seu “Kadish é “recitado” em vida: sua vida é sua morte.

O texto faz transparecer a idéia de uma verdadeira liturgia. Observa-se, tal qual nas rezas, a repetição constante das palavras. Dos poucos parágrafos existentes, a maior parte são marcados pela repetição do NÃO!, palavra esta que sintetiza o conteúdo da obra. Em todo o texto, percebe-se, nitidamente, a presença de palavras ou expressões de sentidos negativos e paradoxais. Por exemplo: doença insidiosa, paranóia moralizante, compulsão discursiva, esclerose dos sentimentos, regato fétido, céu de cores sujas, sonhos medonhos, sorriso cínico-feliz, infame existência, nostalgia, melancolia, sentimento de culpa, cadáver, espetáculo assombroso, atmosfera escura e densa de horror, perversidade repugnante, existência desagradável e outras inumeráveis citações de teor semelhante. E tudo isto torna a obra bastante verossímil, visto que é um reflexo da própria existência do autor: o ambiente em que foi criado, a educação que lhe foi dada, e mais acentuadamente, a experiência de ser judeu, portanto, um estranho na sua própria terra: “mais tarde, quando tornou-se cada vez mais importante o fato de eu ser também judeu, pois tornou-se lentamente evidente que, em geral, isso era punido com a morte, tive que provavelmente ver apenas esse fato estranho e incompreensível – isto é, que eu sou judeu – em sua necessária particularidade ou pelo menos sob outra visada, subitamente me flagrei por saber exatamente o que sou: uma mulher careca com robe vermelho em frente ao espelho” (p. 28).

Embora fosse um judeu totalmente assimilado, Kertész não foi poupado da perseguição voraz do nazismo. Este fato, aparentemente simples, isto é, o fato de ser um judeu, tornou-se a causa de todas as suas desgraças. Tudo nele foi marcado por esta traumática experiência: seu trabalho: “meu trabalho, que na verdade nada mais é que um cavar, o prosseguimento do cavar naquela cova que outros começaram a cavar no ar para mim” (p. 35) (...) “pois minha pá é a caneta esferográfica” (p. 37); seu fracasso matrimonial: “E aí ela ainda disse, rápida e sobriamente, como se se tratasse de uma notícia desagradável que, porém, perde seu gosto desagradável imediatamente após me ser comunicada, sim, não teria sentido esconder, ela ‘teria alguém’, alguém com quem ela acredita que se casará. E ele não seria, disse ela, judeu” (p. 127); sua vida, enfim.

A obra “Kadish por uma criança não nascida” foi, portanto, como o próprio autor afirma, o último grande esforço que ele teve em demonstrar sua vida amargurada e decrépita, vida esta que permaneceria guiada pela culpa e estranheza de ser apenas um judeu: “a demonstrei para então me colocar a caminho, com a trouxa dessa vida nas mãos elevadas, e afundar nas negras águas de um rio escuro, oh Deus! deixe-me afundar... Amém. Este amém encerra a melancólica “liturgia” que, embora “recitada” por só homem, reflete a angústia de toda uma geração.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Fuga para a realidade

Brevíssimos comentários sobre a oba: “Ver: Amor”, de David Grossman

Bruno devia tornar-se um salmão por inteiro, para conhecer a vida” (pg. 141).

A água como elemento de renovação, inovação, mudança ou metamorfose, em Ver: Amor, não se restringe ao caso específico de Bruno: “No profundo porto de Dantzig, ele desceu à água pela primeira vez” (pg. 87). Já no início do livro (primeira parte: Momik), na mudança advinda com a chegada do velho Anshel, este é visto pelo neto exatamente como um peixe: “Olhou para dentro e viu o homem mais velho do mundo nadando lá dentro, como, digamos, um peixe no aquário”(pg. 2). O próprio Momik, para escrever a história de Bruno, teve de experimentar os mistérios e encantos das águas: “Ouça, em minha quarta manhã em Narvia desci pela primeira vez ao mar... A história que escrevi exigia de mim descer ao mar e aguardar ali” (pg.112). Aliás, a idéia da metamorfose como paradigma para se conhecer a vida em sua essência plena, no livro, parece se confirmar pela constante menção do nome de Kafka, autor de Metamorfose: “Mas teve que ficar diante da própria fonte para saber com certeza: também Munch. Como Kafka...” (p.90). / “E Munch assinou. E Kafka assinou...”(pg. 91). / “Escreveram que ele é um dos grandes escritores do nosso século; que se equipara às vezes a Kafka...” (pg.98). Certamente a influência kafkiana se faz presente em Grossman.

A idéia da metamorfose aparece, pois, como elemento imprescindível para se ultrapassar os limites da normalidade, do comum, do banal, do cotidiano marcado pelo caos e pela ausência de valores éticos: “E o pai de Bruno, sonhador com a cabeça de profeta, que se transformou num grande caranguejo de tantos sonhos para tatear os limites da existência humana... desviar-se para as regiões duvidosas e ambíguas, às quais Bruno denomina as regiões da grande heresia” (pg. 100).

Sim, fugir ou isolar-se do mundo real, para atingir um mundo, não propriamente irreal, mas um mundo sem os limites impostos pela áurea dominante; um mundo no qual a vida possa ser vivida e entendida de forma mais profunda. A transformação de Bruno em peixe representa, pois, uma espécie de contestação à cadeia de força imposta pela realidade caótica em que se encontra o mundo: “E veio a última guerra, e Bruno começou a pensar que havia errado: porque as pessoa começaram a substituir a sua iniquidade, e verificou-se que por trás das barracas dos negociantes astutos estendem-se mais mercados profundos e escuros, onde o homem jamais pôs os pés. Ruas corrompidas cujas ruínas e restos de paredes dos dois lados parecem fileiras de dentes de crocodilo... Por isso Bruno fugiu (pg. 91). Tal qual Mirabeau ou Thotreau, foi preciso a Bruno que largasse o seu “lugar comum” para alcançar uma realidade em que o limite se restringisse apenas à cessação da imaginação: “Bruno pensa (talvez, no poeta Mirabeau que, em protesto contra o governo, tornou-se assaltante. Ou estaria, talvez, pensando no filósofo Thoreau, que abandonou sua cidade e seu trabalho e seu sistema de vida e as criaturas humanas e retirou-se para viver em solidão absoluta na floresta Walden?” (pg. 94). Para compreender o que está aquém do óbvio ou do palpável, fez-se mister que Bruno deixasse para trás aqueles que, tais quais salmões no mar, viviam a mercê dos grandes e prepotentes tubarões do mundo real: “Como é ignóbil o destino daqueles que Bruno abandonou na praia!” (pg. 96).

Metaforicamente Bruno não morreu. Ele apenas fugiu: “E certa noite, algumas semanas depois, despertei de repente e soube que Bruno não foi assassinado. Não foi morto no ano de 42 no gueto de Drohobitz, mas fugiu de lá. E digo ‘fugiu’ não no sentido comum, limitado da palavra, mas suponhamos, como Bruno diria ‘fugiu’. Como diria “aposentado”, e com isto referia-se ao fato de que já havia cruzado as fronteiras permitidas e conhecidas, ao fato que e levara ao âmbito magnético de uma outra dimensão de experiência... / Advinho muito bem esta angústia, este sufoco dele, de escritor exilado, ‘exilado’ num sentido muito específico, muito amplo...” (pg. 100). / “E diante das ondas, eu soube que tinha razão. Que Bruno não foi assassinado. Que tinha escapado. E digo ‘escapado’ não no sentido habitual da palavra, mas como Bruno e eu a dizíamos, e nos referíamos com isto a alguém que se conduziu por esforço e decisão ao campo magnético de uma dife...” (pg. 111). / “Ele é daqueles que chamam eles de judeus porcausaque falta pra ele um tiquinho no tubinho dele e como quedondequele nascdeu lá é Drohobitz e queeleé um serumano que escreve muito e ele agora foge de algo...” (pg. 122).

Contudo, não se trata da fuga no sentido romântico da palavra, em que para não encarar a realidade, o escritor parte para paradas amenas, para lugares nos quais a vida possa ser vivida numa dimensão maravilhosamente espetacular. Em Ver: Amor, a fuga é apenas um meio de se atingir o real que se esconde por trás de um cotidiano materialista em que somente o óbvio é realçado e valorizado. A vida vista do mar é bem mais azul.

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Referência bibliografia:
Ver: Amor”, de David Grossman. Tradução: Nancy Rosenchan. Editora Nova Fronteira. São Paulo, 1993.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Dr. Erasmus Darwin, o médico e o monstro



Lendo recentemente o famoso livro de Mary Shelley, “Frankenstein ou o Moderno Prometeu”, dei por conta do nome do Dr. Erasmus Darwin (avô do naturalista inglês Charles Darwin), o qual juntamente com outros cientistas da época serviram como fonte de inspiração à autora no processo de criação deste clássico da literatura universal, considerado o maior romance de terror de todos os tempos.

Para quem não sabe, Erasmus Darwin foi um dos estudiosos europeus que aderiram à crença no Galvanismo, uma teoria fundada no final do século XVIII por Luigi Galvani, médico italiano e professor de Anatomia da Universidade de Bolonha. Os adeptos desta bizarra teoria realizavam experimentos com estímulos elétricos em animais e cadáveres com o intuito de curar enfermidades e até animar defuntos.
O nome do avô de Charles Darwin aparece já no início do livro, quando a autora passa a explicar a origem da história e os motivos que lhe serviram de estímulo na elaboração da obra:

“Muitas e longas eram as conversas entre Lord Byron e Shelley às quais eu assistia como ouvinte devota, mas silenciosa. Durante uma delas, discutiu-se sobre várias doutrinas filosóficas e, entre outras, sobre a natureza do princípio da vida, e se havia possibilidade de ele ser descoberto e comunicado a algo. Eles falavam das experiências do Dr. Darwin (não me refiro ao que o doutor realmente fez ou disse que fez, mas no meu próprio interesse, no que se falava que ele teria feito), que havia guardado um pedacinho de vidro até que, por algum meio extraordinário, ele começou a se mover voluntariamente. Afinal de contas, não era assim que a vida devia ser criada. Talvez se pudesse reanimar um cadáver; as correntes galvânicas tinham dado sinal disso; talvez se pudesse fabricar as partes componentes de uma criatura, juntá-las e animá-las com o calor da vida”.

Mais adiante, no Prefácio do livro, Shelley cita mais uma vez o nome do Dr. Erasmus Darwin, o qual segundo a autora lhe dava a entender que o fato sobre o qual se fundamentava a ficção não seria algo impossível de acontecer:
“O doutor Darwin e alguns fisiologistas alemães têm dado a entender que o fato sobre o qual se fundamenta esta ficção não é impossível de acontecer. Não se deve pensar que eu alimente a menor crença em tal imaginação; no entanto, admitindo-a como a base de obra de fantasia, eu não me considerei como apenas tecendo uma série de terrores sobrenaturais. O fato do qual depende o interesse da história está isento das desvantagens de um simples conto de espectros ou encantamento. Foi sugerido pela originalidade das situações que ele desenvolve e, conquanto impossível como um fato físico, proporciona um ponto de vista à imaginação, para o delineamento das paixões humanas mais compreensivo e imperioso do que podem oferecer quaisquer umas das relações comuns dos acontecimentos reais.”

Já no enredo da história, o Dr. Victor Frankenstein, aquele que arquitetou e consumou a criação do terrível monstro, quando na tentativa de criar a versão feminina desta criatura, faz menção de umas tais descobertas realizadas por cientistas da Inglaterra, país onde nasceu e viveu o Dr. Darwin, e para onde ele planejava viajar na busca de novos conhecimentos para seu novo empreendimento científico:
“A criação de uma fêmea significava a volta ao meu trabalho nefando de outrora, meses e meses de estudos e pesquisas laboriosas. Ouvira falar de umas descobertas que tinham sido feitas por um cientista inglês, cujo conhecimento era importante para o meu êxito, e por várias vezes cogitei de acertar com meu pai minha viagem à Inglaterra, sem, naturalmente, dar-lhe a conhecer o meu real objetivo.” / “Lembrei-me também da necessidade de viajar à Inglaterra ou manter uma correspondência, certamente longa, com os cientistas daquele país, cujas recentes descobertas eu considerava de utilidade indispensável ao empreendimento que tinha de realizar. Esse, porém, seria um meio por demais demorado e insatisfatório de obter as informações que desejava.”

O avô de Charles Darwin, que era membro de uma tal Sociedade Lunar (“Lunar Society of Birmingham”), é também considerado um dos fundadores do evolucionismo, ao lado de Spencer e outros nomes. Esta sociedade tinha por finalidade buscar novos conhecimentos que combatessem o “obscurantismo religioso”. Paradoxalmente, porém, o Dr. Darwin fez do seu naturalismo extremo sua própria religião, chegando mesmo a afirmar que as plantas tinham alma e por isso eram capazes de expressar emoções. Talvez isso explique em partes porque seu famoso neto, Charles Darwin, o ignorou quase que completamente em suas obras.

É isso!